domingo, 18 de dezembro de 2011

Mise En Scene

Mise En Scene - Alain Barnole

É noite e ela entra em casa como quem já não tem aonde ir. A sala vazia lembra o quanto a mulher combina com sua a mobilha. A mulher que não é sua, deixa vazia a casa por não estar. Ela sente o vazio de dentro. Há coisas, e coisas pedem por serem feitas, tocadas, carecem do sentido que a utilidade tem. Ela se entrega às coisas. É madrugada e ela se perde no olhar da felina que acompanha sua inglória busca pela casa cheia, a mulher por ser sua, os sons, as palavras. Ela tenta dormir, mas sabe que não vai. Insones sentem a madrugada ganhar corpo como que por instinto.
A água fria e forte do banho acorda o corpo e a mente. Ela sente a pele esfriar aos poucos e lembra as coisas de mulher. Põe-se a cuidar-se, sente-se esperada. Lava os cabelos demoradamente. Cobre o corpo com espuma e gosta do cheiro suave que fica em sua pele. Enrolada pela toalha, fita seus olhos no espelho. Sente-se bonita, quer ser vista neste momento em que realmente está muito bonita. Seca os cabelos descuidada. Gosta do vento quente e dos fios voando. Sai nua e anda pela casa como se nada mais houvesse.
Serve-se de uma taça de vinho. Muito civilizado ter vinho como companheiro de insônia, ainda que seja terça-feira e a rotina diurna cobre atenção. Sentada ao pé da cama, ela alcança um livro qualquer jogado pelo quarto. Os livros, os textos, todos os escritos espalhados como as idéias, os sentimentos, sim os grandes sentimentos espalhados dentro dela, que agora lê e pinta as unhas de vermelho. As unhas vermelhas a lembram da mãe. Ela tem os dedos da mãe, os dedos e não as mãos da mãe. Sempre viu graça da forma com foi montada com pedaços tirados da mãe e do pai. Alguns de tão misturados, tornaram-se apenas dela, sendo impossível dizer à quem pertenceram antes.
A mulher não vem, ela sabe que ela não vem. Nem ao menos disse que viria, o que não a impediu de querer. Querendo viu a porta se abrir incontáveis vezes. Vai amanhecer e ela não quer ver amanhecer. Sentindo-se ainda muito bonita, deita-se nua e finalmente dorme.
A mulher acorda cedo, bem mais cedo do que costuma acordar e do que lhe é confortável. Ainda assim não se demora na cama. Pôs-se pronta rapidamente, dispensou o café da manhã e deixando a casa que já foi sua sente ainda alguma estranheza por ter outras chaves em suas mãos. Ainda tomando o suco que tirou distraída da geladeira, pensa que não há muito sentido no caminho que faz àquela hora da manhã. Mas há urgência no seu corpo. A mulher sabe do que precisa. Pensando nela, sente o corpo vivo. Pode ouvir-la recitando Pessoa, e o caminho é longo demais para o tamanho do que se move na mulher.
Para diante do portão, usa a chave que já lhe é familiar. Chave que ela lhe deu, sem saber ao certo o porquê, e a mulher aceitou por não duvidar dela. Abre a porta que a leva até a sala, a mulher gosta de entrar na casa ainda silenciosa. Descalça as sandálias, vai até a cozinha e serve-se de água. Volta à sala e tira toda a roupa, deixando a sobre o sofá. Pode ouvir-la dizendo que a mulher combina com sua mobilha.
Abre delicadamente a porta do quarto, para e põe-se a olhá-la longamente. Ela, dormindo de bruços, nua com a manhã entrando suave através das cortinas e pintando-a com luz e sombras. A mulher aproxima-se lentamente para não despertá-la. Tira o lençol que pretendia cobrir seu corpo, mas apenas o cruza desleixado. Ela se mexe, ainda dormindo, parece saber que a mulher está ali. A mulher entra nela sem palavras, ela a recebe sem palavras. Abre os olhos como quem não precisa abri-los e o faz apenas para dizer o que os lábios calam, mas eles, os olhos, gritam!
Gira o corpo para recebê a mulher de frente, aberta, e a encara com firmeza. Caladas declaram o amor assim como o tem amado. Um amor de bicho, sem razão, que vive no sem tempo de dentro, na hora parada do mundo de fora. Um amor que encontra eco, acolhimento, é forte e ainda assim se faz de pequeno para não assustar as amantes. A mulher sabe que é nela o seu lugar. Ela entende que ainda não sendo sua,  aquela mulher como olhos de menina, é seu desejo. No gozo acalmam a urgência, ela recebe o que vem da mulher como coisa sua, e em troca lhe dá o que vem dela. Misturadas, suadas, abraçadas, agora já encontram palavras. Falam de amor quase nada, contam segredos, medos. Planejam viagens, provam o mundo antes de saírem da cama. A água agora lava os corpos das amantes. O banho agora é cheio! Tocam-se enquanto trocam palavras soltas. Riem, e ela coloca a mesa para a mulher, ela faz o café e lembra-se de como a mulher combina com a mobília. A mulher não demora. Ela corta o pão em pedaços pequenos com a mão, um a um, a mulher o parte ao meio. A mulher usa açúcar, ela toma puro às vezes . Elas nem sempre se sentam nos mesmos lugares. A mulher sempre acha graça da miss and cene. Ela sempre faz a miss and cene. E elas lamentam juntas sabor das horas e do mundo lá fora.

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