Mise En Scene - Alain Barnole
É noite e ela entra em casa como quem já não tem aonde ir. A sala vazia lembra o quanto a mulher combina com sua a
mobilha. A mulher que não é sua, deixa vazia a casa por não estar. Ela
sente o vazio de dentro. Há coisas, e coisas pedem por serem feitas,
tocadas, carecem do sentido que a utilidade tem. Ela se entrega às
coisas. É madrugada e ela se perde no olhar da felina que acompanha sua
inglória busca pela casa cheia, a mulher por ser sua, os sons, as
palavras. Ela tenta dormir, mas sabe que não vai. Insones sentem a
madrugada ganhar corpo como que por instinto.
A água fria e forte do banho acorda o corpo e a mente. Ela sente a pele
esfriar aos poucos e lembra as coisas de mulher. Põe-se a cuidar-se,
sente-se esperada. Lava os cabelos demoradamente. Cobre o corpo com
espuma e gosta do cheiro suave que fica em sua pele. Enrolada pela
toalha, fita seus olhos no espelho. Sente-se bonita, quer ser vista
neste momento em que realmente está muito bonita. Seca os cabelos
descuidada. Gosta do vento quente e dos fios voando. Sai nua e anda pela
casa como se nada mais houvesse.
Serve-se de uma taça de vinho. Muito civilizado ter vinho como
companheiro de insônia, ainda que seja terça-feira e a rotina diurna
cobre atenção. Sentada ao pé da cama, ela alcança um livro qualquer
jogado pelo quarto. Os livros, os textos, todos os escritos espalhados
como as idéias, os sentimentos, sim os grandes sentimentos espalhados
dentro dela, que agora lê e pinta as unhas de vermelho. As unhas
vermelhas a lembram da mãe. Ela tem os dedos da mãe, os dedos e não as
mãos da mãe. Sempre viu graça da forma com foi montada com pedaços
tirados da mãe e do pai. Alguns de tão misturados, tornaram-se apenas
dela, sendo impossível dizer à quem pertenceram antes.
A mulher não vem, ela sabe que ela não vem. Nem ao menos disse que
viria, o que não a impediu de querer. Querendo viu a porta se abrir
incontáveis vezes. Vai amanhecer e ela não quer ver amanhecer.
Sentindo-se ainda muito bonita, deita-se nua e finalmente dorme.
A mulher acorda cedo, bem mais cedo do que costuma acordar e do que lhe é
confortável. Ainda assim não se demora na cama. Pôs-se pronta
rapidamente, dispensou o café da manhã e deixando a casa que já foi sua
sente ainda alguma estranheza por ter outras chaves em suas mãos. Ainda
tomando o suco que tirou distraída da geladeira, pensa que não há muito
sentido no caminho que faz àquela hora da manhã. Mas há urgência no seu
corpo. A mulher sabe do que precisa. Pensando nela, sente o corpo vivo.
Pode ouvir-la recitando Pessoa, e o caminho é longo demais para o
tamanho do que se move na mulher.
Para diante do portão, usa a chave que já lhe é familiar. Chave que ela
lhe deu, sem saber ao certo o porquê, e a mulher aceitou por não duvidar
dela. Abre a porta que a leva até a sala, a mulher gosta de entrar na
casa ainda silenciosa. Descalça as sandálias, vai até a cozinha e serve-se
de água. Volta à sala e tira toda a roupa, deixando a sobre o sofá. Pode
ouvir-la dizendo que a mulher combina com sua mobilha.
Abre delicadamente a porta do quarto, para e põe-se a olhá-la
longamente. Ela, dormindo de bruços, nua com a manhã entrando suave
através das cortinas e pintando-a com luz e sombras. A mulher
aproxima-se lentamente para não despertá-la. Tira o lençol que pretendia
cobrir seu corpo, mas apenas o cruza desleixado. Ela se mexe, ainda
dormindo, parece saber que a mulher está ali. A mulher entra nela sem
palavras, ela a recebe sem palavras. Abre os olhos como quem não precisa
abri-los e o faz apenas para dizer o que os lábios calam, mas eles, os
olhos, gritam!
Gira o corpo para recebê a mulher de frente, aberta, e a encara com
firmeza. Caladas declaram o amor assim como o tem amado. Um amor de
bicho, sem razão, que vive no sem tempo de dentro, na hora parada do
mundo de fora. Um amor que encontra eco, acolhimento, é forte e ainda
assim se faz de pequeno para não assustar as amantes. A mulher sabe que é
nela o seu lugar. Ela entende que ainda não sendo sua, aquela mulher
como olhos de menina, é seu desejo. No gozo acalmam a urgência, ela
recebe o que vem da mulher como coisa sua, e em troca lhe dá o que vem
dela. Misturadas, suadas, abraçadas, agora já encontram palavras. Falam
de amor quase nada, contam segredos, medos. Planejam viagens, provam o
mundo antes de saírem da cama. A água agora lava os corpos das amantes. O
banho agora é cheio! Tocam-se enquanto trocam palavras soltas. Riem, e
ela coloca a mesa para a mulher, ela faz o café e
lembra-se de como a mulher combina com a mobília. A mulher não demora.
Ela corta o pão em pedaços pequenos com a mão, um a um, a mulher o parte ao meio. A mulher usa açúcar, ela toma puro às vezes . Elas nem sempre
se sentam nos mesmos lugares. A mulher sempre acha graça da miss and
cene. Ela sempre faz a miss and cene. E elas lamentam juntas sabor das
horas e do mundo lá fora.