Os Felinos - Franz Marc
Ele disse, no escuro, ainda dentro dela. Ele disse “amo você”. Disse o nome dela, e disse “amo você”. Encheu-se dele, das palavras dele. Calou, como que para não macular o momento. Não ansiou por ouvi-lo repetir tais palavras. Não havia razão alguma para repetições. Estava dito. Acolheu suas palavras, no escuto. Mal via seu rosto, mas as palavras ainda as escuta.
A primeira vez em que o ouviu a voz dele não tinha um rosto, e não precisava ter. Voz. Foi primeiro a voz. E só depois as palavras, que se mostraram tão próximas, coisas que ela diria. Ai veio o gesto, o jeito de olhar no seu olho com o olho brilhando. O riso alegre, um ar de menino. Não havia o que cuidar no menino, pôs-se a brincar com ele.
A rua, dúvida, vontade e escolha. Um silêncio de anunciação. Caminharam ainda um tanto afastados, sabendo que o caminho fora aberto. Veio o crescente encantamento, alegrias bobas, alegrias tão bem vindas. Mais olhos que se olhavam alheios ao resto do mundo. Ouviram muito, mostram ainda mais. A despedida, um tanto sem jeito, medo de interromper o encantamento. Por fim o beijo, adolescente beijo que não quer acabar de beijar. O beijo que parou para dar tempo da vontade crescer. Antes um último som, que falava sem rosto, mais do que as palavras diziam.
A vontade cresceu. O reencontro, um novo lugar, palavras, muitas palavras e corpos que seguiam por vontade própria. A porta se fechou e os corpos falaram sem palavras, misturando-se, desejando-se, encontrando-se. Não couberam regras, elas ficaram do outro lado da porta. O tempo parou, a noite virou dia e deixou a certeza de um momento único compartilhado. Um encontro, um reconhecimento, a clareza de que começara ali um não sei o quê mágico.
Pessoas comuns não se metem em encrencas, não quando as podem evitar. Pessoas especiais pressentem encrencas e sabem que não há outro caminho a seguir. Seguiram.
Misturaram-se, ele trouxe música de volta a casa dela. Deitou ao seu lado na cama. Despertou-a de tantas formas que fez da manhã mais colorida. Ela pôs a mesa enquanto ele a olhava. Via-se feliz, com a mesa posta e ele ali, falando de coisas que a fazeram sentir uma profunda clareza quanto à não existência do tempo. Só o momento repetindo-se de formas múltiplas.
Tempo, em verdade esse nunca parou, só o ignoravam. Porque de fato o tempo era outro. Há muito conheciam-se, e os dias que seguiram-se soavam como anos, repletos de momentos tão familiares quanto surpreendentes. Olhando para ele entendeu que as coisas estavam onde deveriam estar. eles estavam onde deveriam estar. Onde queriam estar.
Eis que houve o que no intimo temiam, o real, o tempo. Passado e futuro questionando-os, cobrando respostas a perguntas as quais não queriam responder. Melhor não existir ontem, melhor ser só agora! Todos os dias sendo só agora. Pessoas, ainda que especiais, não são perfeitas. Por isso são especiais. Hoje há música em casa. E ainda que ele não esteja lá, ela ri com felinos.
PS: ao som de “The Mahavishnu Orchestra - Vital Transformation". (muito apropriado!)
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